Entrevista a Eduardo Sá.
Queremos Melhores Pais!’, somos assim tão maus... é um mote para uma manif de filhos?
Foi
uma provocação (risos). Incomoda-me que os pais se desperdicem tanto.
Os pais têm a seu favor variadíssimas coisas: têm um imenso bom senso,
regra geral, e têm um sexto sentido, absolutamente notável. Repare, há
40 diferentes tipos de choro, e uma mãe não precisa de aulas de
compensação para discernir por que é que o bebé está a chorar. Este
sexto sentido é o equipamento base da natureza humana. Além disso, os
pais tiveram uma infância. E por mais que a infância dos pais não tenha
sido cor-de-rosa, deu-lhes um conjunto de competências. Diz-se muitas
vezes que os pais não têm tempo, são maus pais. A ideia deste título
provocatório é dar-lhes um safanão e dizer-lhes ‘vejam bem o que são
capazes! Percam de vez o medo de errar, porque os bons pais para serem
bons pais precisam de fazer uma asneira de 8 em 8 horas’, enquanto não
chegarem lá não devem perder a esperança. (risos)
Mas os pais não têm medo de traumatizar os filhos com os seus erros?
Pois
têm, mas sabe, a psicanálise trouxe para a opinião pública a noção de
traumatismo mas não podemos perder de vista que estávamos a falar nas
crianças dos finais do século XIX, crianças exploradas durante a
Revolução Industrial, com famílias descuidadas, que viviam todas num
quarto, com falta de privacidade aos mais diversos níveis. Eram crianças
muitas vezes iniciadas sexualmente de forma absurda, precoce, e muitas
vezes por alguém da família, por isso quando se falou de traumatismo a
questão punha-se neste contexto.
O que os pais têm de perceber é
que não é possível crescer sem dor. Receio que muitos pais tenham
crescido de tal forma num mundo de autoritarismo, que de repente dizer
‘não’ a uma criança é quase sinónimo de traumatismo. E é precisamente ao
contrário. Às vezes, a função de um técnico de saúde mental é dar uns
safanões aos pais e dizer ‘deixem-se de tolices, magoem um bocadinho se
tiver de ser’. Se magoarmos as crianças dizendo ‘não’, são dores que nos
empurram para a frente. Muitos pais querem tanto proteger os filhos das
dores, que fazem pior.
Confundimos mimo com sobreproteção?
Sim,
o mimo faz muito bem à saúde e ninguém se estraga com mimo, muito pelo
contrário. Já perdi a conta às pessoas que por falta de mimo se estragam
pela vida fora, o mimo faz melhor que a vitamina do crescimento. Mas
mimar não é dar a comida na boca dos filhos quando têm 6 anos, não é
adormecer os filhos todas as noites na cama dos pais, não é levar a
mochila até à porta da escola como se fossem mordomos... e não é dizer
‘sim’ a tudo.
Fala muitas vezes de jardins de infância
tendencialmente gratuitos, de necessidade de bons recreios... Entre o
país que desejava ter e o país real vai uma grande diferença?
Enorme.
É verdade que somos a melhor civilização que existiu para as crianças,
damos-lhes os cuidados e a atenção que seguramente os nossos pais, por
melhores que tenham sido, não nos deram, e tenho até medo que em algumas
circunstâncias sejamos um bocadinho exagerados nos cuidados que temos
com elas, como se de repente, em vez dos pais serem a Entidade
Reguladora das Crianças, elas parecessem a Entidade Reguladora dos Pais.
Mas, ainda assim, acho que falta muito para nós sermos um país amigo
das crianças. Há estudos que dizem que um filho pode custar, a um casal
de classe média, até 75 euros por dia, tendo em consideração tudo:
educação, vestuário, saúde, atividades extracurriculares... Por isso
gostava que os governantes e políticos explicassem aos cidadãos como é
possível um casal ter vários filhos até aos 6 anos, sendo os jardins de
infância em Portugal mais caros que as universidades privadas. Nunca
houve uma perspetiva séria de darmos às crianças a devida importância
que elas têm. Só começaram a ser importantes quando começaram a ser
vistas como conta poupança reforma, quando se fez contas ao sistema que
sustenta a segurança social e se viu que, sem elas, entrava em rotura.
E também não somos um país amigo dos pais!
Não,
de todo. Preocupa-me, por exemplo, que não haja um código de direito do
trabalho que preveja que as consultas de obstetrícia devam ser
tendencialmente obrigatórias para todos os homens que estão a ser pais.
Muitas entidades patronais funcionam ainda segundo regras muito próximas
da Revolução Industrial. Ainda não perceberam o óbvio, que não é
preciso trabalhar muito para se produzir mais, e não fazem aquilo que
muitas multinacionais fazem, que é perguntar aos seus novos empregados
se têm vida própria, vida familiar, valorizando esses aspetos, porque
percebem que essas pessoas que se dividem por mais desafios são pessoas
mais competentes. Ou seja, a relação com o trabalho é importante mas a
relação amorosa ou com os filhos é muito mais importante e, entretanto,
as transformações sociais que são feitas são contra as pessoas...
A necessidade de brincadeira é outro dos seus cavalos de batalha...
A
brincadeira das crianças é um património da Humanidade. Brincar devia
ser uma atividade obrigatória para todas as crianças, todos os dias.
Muitas crianças neste país têm uma agenda laboral que vai para além do
razoável. Faz agora anos que eu lancei com uns amigos o Sindicato das
Crianças, uma forma caricatural de chamar a atenção para a importância
de lutar pela semana de 40 horas para as crianças. Há crianças que
passam 55h por semana na escola, desde que abre até fechar, sem contar
com atividades extracurriculares e os trabalhos de casa.
O ranking das escolas foi publicado recentemente, qual é a sua opinião?
Sou
contra, e até para tentar ser provocatório costumo dizer se querem
rankings então levem isso às últimas consequências. Devia haver nas
escolas, logo à entrada de preferência, o ranking dos alunos faladores,
por exemplo (risos). Porque falar é um bem precioso. E já agora peguem
naquelas crianças a quem morreu o pai, ou que tiveram um transplante ou
passaram pelo divórcio dos pais e ponham-nas no quadro de honra, porque
elas merecem. Passaram por grandes dificuldades mas no ano seguinte
comeram a relva e fizeram um esforço terrível para ter um nível 3 ou
nível 4.
Mas vamos lá ver, eu não tenho nada contra as crianças
terem boas notas, isso é muito bom, mas também ter boas notas como
filho, porque já vi muitas crianças que têm boas notas mas depois são de
uma arrogância com os pais... as pessoas estão a dar importância única e
exclusivamente às notas das disciplinas e esquecem-se de tudo o resto.
E estamos a pôr todos os alunos no mesmo saco, os privilegiados e os que nada têm, não será injusto?
Comparar
escolas públicas com privadas é batota, comparar escolas de meninos com
pedigree com escolas do interior onde não há aquecimento nas salas, em
que os professores pagam o material escolar, isto é uma maneira de
andarmos a mentir uns aos outros. Atualmente, se uma criança tirar uma
negativa é um pecado, então errar também não é aprender? Há tantas
condicionantes no dia a dia, um mau professor, a vida familiar que é de
tal modo um inferno que não há cabeça para aprender as coisas na
escola...
Vemos os nossos filhos como um reflexo do nosso sucesso... ou falhanço?
Mas
isso é mau, eu costumo dizer que nós começamos a ser pais ali por volta
do terceiro filho, o primeiro é sempre uma criança em perigo, porque se
mistura a nossa história de vida, porque se mistura os pais que nós
tivemos, muitas das coisas que não gostámos dos nossos pais, misturamos
os nossos sonhos no sentido de construir um filho tão perfeito que às
vezes são mais os nossos enredos do que a singularidade do nosso filho.
No primeiro filho somos todos muito frágeis, ingénuos, e suscetíveis a
fazer erros... e precisamos de os fazer para conseguirmos ser pais. Por
isso é que os avós fazem um figurão, já fizeram tantas asneiras que
agora brilham facilmente. Tudo fica mais fácil quando os pais erram e
percebem que podem fazê-lo. Porque quando os pais erram de uma forma
quase tímida e querem ser tão perfeitos para os proteger e dar-lhes o
sucesso que eles próprios não tiveram, estão, sem se darem conta, a
transformá-los num troféu... muito mais do que criar as condições para
que as crianças tenham uma vida de acordo com os sonhos delas próprias.
E por isso há tantos pais a ‘estudar’ com os filhos, a fazer os TPC com eles?
Para
já sou contra os TPC, eles já estão muito tempo na escola e não vão
aprender em casa o que não aprenderam na escola. Se o TPC for ir ao
supermercado aprender a fazer trocos, tudo bem, se for 20-30 minutos
tudo bem, mais do que isso nunca... E sempre com autonomia, sozinhos, de
outra forma estamos a dar a mensagem errada.
A crise
económica não nos tornou piores pais? Discutimos mais, perdemos as
estribeiras mais facilmente, andamos preocupados stressados...
Sim,
claro sim, mas, eu peço desculpa pelo que vou dizer, é quase humor
negro, mas acho que há um lado bom na crise, porque vai tirar
megalomania onde ela antes existia, a euforia era tão grande, tudo
parecia ter um preço. A crise vai criar sofrimento nas famílias, é
certo, mas vai ajudar-nos a perceber se temos ou não temos família e a
impor a verdade nas relações. E pode trazer a noção às crianças de que
viver não é fácil, e não é no sentido trágico do termo, é aprender a
resolver problemas.
Qual é o melhor presente de natal que se pode dar a uma criança?
O
pai ou a mãe adivinharem os seus sonhos sem que elas precisem de
escrever ao pai natal. Aqui entre nós, vale para as crianças como para
os pais. As crianças escrevem ao pai natal porque é uma forma de dizer
aos pais ‘orientem-se’, e os pais gostam de ver o brilhozinho nos olhos
porque gostam de dar os presentes que eles gostariam de ter quando eram
pequenos. Mas os crescidos não escrevem ao pai natal mas estão sempre a
espera que os outros adivinhem aquilo que querem ter ou sonham.
O que ainda o surpreende?
A
maneira comovente como os filhos e os pais estão à espera de se
surpreenderem uns aos outros. Pais, que são crianças crescidas, e que às
vezes parecem ter uma parede de vidro a impedir os seus bons gestos de
pais. Isto é absolutamente comovente, por mais kms que eu tenha disto,
continua a surpreender-me todos os dias.
Todas as famílias são únicas e especiais!!!
Sem comentários:
Enviar um comentário